O Solar da Fossa (1964-1971) foi o “ri-fi-fi pálace hotel” do desbunde, refúgio ideal para artistas e intelectuais que transitaram pelo final da década de 60 no Rio de Janeiro. Eram tempos sombrios e solares ao mesmo tempo, onde se plantava pé de sonho numa terra dita...dura muito braba. Este território livre de jovens inconformados e criativos marcou uma época de muita luta, dureza e idealismo político, quando a mobilização e a contestação social espelharam-se no espírito libertário da época.
O movimento da Contracultura nasceu ali naquela pensão instalada no casarão da avenida Lauro Sodré, em Botafogo, onde hoje é o Shopping Rio Sul, que ironia! Era a Pensão da Dona Jurema (ou Pensão Santa Teresinha) que foi batizada de Solar da Fossa pelo carnavalesco e homem de teatro Fernando Pamplona, quando lá morou depois da separação.
Debates filosóficos, canções geniais sendo compostas, gemidos de amor atravessando as paredes e muuuita farra (que ninguém é de ferro) marcaram a existência do célebre Solar. Da fossa, por que tava na moda “estar na fossa”, era uma postura correta e charmosa, herdada do existencialismo, do clima intelectual do cinema novo e da bossa nova que nasciam. Era uma fossa existencial por que ninguém estava satisfeito com os rumos do país. O clima geral era de revolta e transgressão a todos os valores que estavam em pauta.
O Solar virou livro: “Solar da Fossa – um Território de Liberdade, Impertinências, Ideias e Ousadias” de Toninho Vaz (Editora Casa da Palavra), lançado mês passado.
O autor nunca morou lá, mas sua ligação com Paulo Leminski e Torquato Neto, residentes do Solar, lhe despertaram o interesse de escrever sobre a pousada mais underground de todos os tempos. As histórias são animadas, e a contextualização, histórica.
Toninho Vaz já havia escrito a biografia do professor, poeta, escritor, tradutor e músico Paulo Leminski (“O bandido que sabia latim”/Edit.Record) quando se interessou em levantar a história do Solar. Desenvolveu o trabalho por dois anos, e depois de uma frustrada tentativa na Editora Record, fechou com a Casa da Palavra a publicação. Leminski escreveu lá o seu famoso romance “Catatau”, compôs “Verdura”, que o vizinho Caetano Veloso gravou no disco “Outras palavras”, e produziu seus poemas de vanguarda, publicados em revistas alternativas de então.
AI-5, Woodstock, o homem pisando a lua, jornais e revistas alternativos, como O Sol/Poder Jovem de Reynaldo Jardim e movimentos estudantis em todo mundo faziam contraponto com o Movimento Hippie e a esperada Era de Aquarius no pano de fundo, abrindo a tampa da efervescente década de 70.
Caetano Veloso, a figura mais emblemática da época, morou e criou muuuito no Solar. Compôs tres jóias marcantes no seu apê: “Alegria, alegria”, “Paisagem útil” e “Panis et circenses”, que cita na letra:
Mandei plantar/ Folhas de sonho no jardim do Solar/ as folhas sabem procurar pelo sol...
Gal Costa ainda não era a musa do tropicalismo, mas lá ela fez o vestibular, em tempos de riponga, muita dureza, durango kid total, como ela diz:
“Lembro que não havia nada para comer, nem dinheiro, só um vale de garrafa vazia de Coca. Foi o que me salvou, pois consegui comprar leite gelado e um bolinho de fubá.”
Maria Gladys, na época, era doublé de atriz e dançarina de yê-yê-yê do Imperial na TV Rio. Namorou Roberto Carlos nos intervalos dos ensaios do Teatro Jovem de Kleber Santos, que também morava no Solar. Conta um jornalista que escutou nos corredores uma briga daquelas entre ela e Kleber: “Seu problema é que você não tem xavasca!”...
Sempre antenada, ela conceitua bem esta época de efervescência: “Estar na fossa nesses dias, demonstrava engajamento, preocupação com o mundo ou apenas uma paixão irremediavelmente não correspondida.”
Paixões e casamentos rolaram direto. Marieta Severo e Chico Buarque se cruzaram pela primeira vez no pátio do Solar, onde além das performances de Naná Vasconcelos, a paquera rolava solta. Hélio Oiticica pintava, Macalé batucava, entre goladas de conhaque Dreher. Os pegadores estavam sempre de plantão, como Roberto Talma:
“ No Solar onde havia um grande elenco de mulheres bonitas, se você não tivesse alguma literatura, um pensamento filosófico atualizado, uma conversa definida sobre arte,você não comia ninguém...”
Betty Faria é símbolo da mulher consciente e livre que nasceu neste revolucionário tempo, tipo Leila Diniz, Helena Ignez, Tânia Scher, Gladys, Aninha Magalhães, Isabel Ribeiro, Marilia Pêra, Celinha Azevedo, Adriana Prieto, Sonia Dias, Silvia Sangirardi, Maria Lucia Dahl, Marieta Severo, Darlene Glória, Vera Vianna, Rosa Maria Pena e a doce Anecy Rocha, entre outras...Em 1968 quando entrevistei Betty para o Jornal de Ipanema, grávida de Alessandra e correndo em passeatas estudantis, perguntei : o que você dirá pra sua filha quando ela for jovem? E Betty: “Vou dar pra ela uma caixa de pílulas anticoncepcionais.”
Sobre o Solar, seu lar por um bom tempo, diz: “Naquele momento, aos 24 anos, me faltava apenas liberdade pessoal, aquele rompimento necessário para uma pessoa passar a ser gente.”
“Mas eu sou diferente, e só vou bem conversada!”...
Era o que cantava Darlene Glória no musical “Praça Onze” da TV Rio, em quadro luxuoso musicado por João Roberto Kelly. Na mesma época habitava o Solar, apaixonada pelo policial Mariel Mariscott. Com ele teve seu primeiro filho, e depois mudou-se de lá pra casa da mãe, levando o enxoval que Regina Duarte presenteou.“Curtíamos a falta de comida e a luta pelo sucesso”, relembra Darlene.
Tânia Scher era radiosa, gostosa e cheia de gás, mas estava sempre na fossa. Virou na época personagem do cartunista Jaguar, a Tânia da Fossa. Na parede do reformado bar Zepellin de Ipanema,o cartoon: o ratinho Sig gritando para um buraco negro: “Tânia, sai da fooooossa!”.
Bigode, ou Luiz Carlos Lacerda, morou por dois anos, sempre no mesmo apartamento. Com a turma do cinema novo, muitos projetos floresceram pelas suas mãos. Em 1969, envolvido na produção do filme “Máscara da Traição” de seu amigo Roberto Pires, cedeu seu apê para locação do filme. O excelente policial do talentoso (e grande figura) Pires, estrelado por Glória Menezes, Tarcísio Meira e Cláudio Marzo, pode ser visto na programação do Canal Brasil.
Na seqüência, uma cena do trio poderoso protagonista, rodada no apartamento de Bigode, uma imagem viva do Solar da Fossa. Curtam.
Salve o Solar de impertinências e ousadias, como diz o escritor Toninho Vaz, que presenteia o século 21 com um documento substancial de importante momento social, político e artístico rolado no século passado. Salve!
Sua avaliação sobre a epoca e o livro é brilhante. Do velho ator emiliano queiroz
ResponderExcluirFiquei situado por tudo contado aqui porque vivi o período retratado como jovem cabeludo com a cabeça fervilhando de ideías que acobertavam ideais quixotescos.E foi no solar nesse mesmo patio que conheci alguem da qual nunca esqueci, e mais não é póssivel para falar. Meu coração rasgado,ferido, nunca ficou cicatrizado de todo, possam entender isso.Hoje ainda causa perplexidade no fundo eu ter sobrevivido a tudo, do coração obrigado, S.P.S
ResponderExcluirAdorei essa sua ideia de ser nosso arquivo. Foi uma epoca marcante, quase sem registro, quando a gente sonhava em fazer arte e dividia um pão. Foi o principio de uma cultura.... cinema, teatro, musica. Tá tudo aí. Bjs
ResponderExcluirVera Vianna
Fiquei curiosa de saber mais. Procurei o livro para comprar e não tinha em nenhuma livraria de Ipanema, encomendei e espero agora a entrega, obrigada pela sugestão/Bebel
ResponderExcluirAi que tempo bom!!!! Saudades de uma coisa que eu nunca tive KKKKKKKKKKK!!!! Sol
ResponderExcluiracho que o solar foi uma valvula de escape onde fervilharam idéias e os hormonios tavam quentes pra caramba. babyI love you. bruce r.
ResponderExcluirAi, eu sou de época meu Deus!!!Tive esse cabelo da Gloria Meneses igual! Acho que nós éramos felizes e sabiamos - Lucia Helena Brandão
ResponderExcluirPARABÈNS POR REFRESCAR NOSSA MEMÓRIA DE MANEIRA SÉRIA. LEMBRAR O SOLAR FALANDO DA TANIA DA FOSSA QUE JAGUAR E IVAN LESSA CRIARAM PARA OS CHOPINICS É VOLTAR A UMA ÉPOCA EM QUE INTELECTUAIS DESTE PORTE FIZERAM RESISTENCIA INTELIGENTE AO REGIME MILITAR NO SAUDOSO "PASQUIM", COM ZIRALDO, MILLOR, TARSO DE CASTRO, PAULO FRANCIS, ODETE LARA, E OUTROS GRANDES.TÍNHAMOS QWUE FICAR NA FOSSA MAS ATENTOS E FORTES COMO NA MÚSICA DE CAETANO. CUMPRIMENTOS,HÉLIO CASTRO
ResponderExcluirmuito bom,lugar interessante, mas oque sobrou foi só as boas histórias!!!!!
ResponderExcluirL.Sergio Parabéns pela matéria,grande abraço do seu amigo J.Henrique..
Eu gostaria de ter vivido esse tmpo. Tudo que leio adoro e fico com vontade de saber mais. Jane
ResponderExcluirFico feliz de ver e ler lembrança cultural do rio aplausos.
ResponderExcluirSei de tudo isso pois morei lá até os moradores do Solar serem "despejados" pela Justiça. A senhora que mantinha a casa nos moldes de "Residence Service" embora notificada não avisou aos moradores que somente souberam do fato pelo Oficial de Justiça. Foi um sufoco. De lá gostava de uma moradora que fazia e vendia refeições nos fins de semanas(muito boas) aos outros moradores. Saudades...
ResponderExcluirMuito bom ter um relato tão rico desta época tão rica culturalmente viva o solar!!!!!
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