Aqueles anos 70 não seriam os mesmos sem a presença de
VICENTE PEREIRA (1950-1993), ator e dramaturgo mineiro que iluminou as tardes e
as noites cariocas da década, especialmente as de Ipanema, com a sua mente
brilhante, arejada e super bem humorada. Através da Denise Bandeira, conheci ele
e Mauro Rasi, seus amigos de Brasília, autores de diversas peças de teatro em
parceria, tão originais quanto seus mentores. As peças, geniais e inéditas.
Residíamos, eu e Bandeira, no Arpoador em paredes e
corações colados, o que rapidamente amalgamou um point muito animado. Se nosso apartamento falasse...Quando a
campainha da porta tocava frenética era ele, cantarolando ...“a perereca da
vizinha tá presa na gaiola”, e nós fazíamos uns “passes” como Dercy em “Viva o
Vovô Deville”...Nossos apartamentos eram no térreo e se interligavam através de
um imenso jardim (maior que a área do imóvel), com direito a “coqueiro que dá
côco” e tudo mais. Louise Cardoso mudou-se um tempo depois que Bandeira
saiu...A farra da terra!
Ria de tudo como um saltitante coelho da Páscoa
nessa época...parecia que estava sempre feliz, livre, solto, transmitindo um otimismo
contagiante. Com o humor sempre afiado, transformava qualquer história em gargalhada
ou comentário surpreendente, sarcástico, debochado. Gostava de dar apelidos,
quando Denise comprou um biquíni dourado e exibiu seu corpaço no Posto 9, ele bateu:
“O Ouro de Nápoles!” Gargalhada geral.
VICENTE tinha uma vasta produção de textos inéditos,
não só em parceria com Rasi mas também seus...Consegui apresentá-los a alguns
produtores conhecidos, e Gracindo Jr se interessou pela comédia “À Direita do
Presidente” em pleno início da abertura democrática. Humor rascante e bastante
atualizado com o momento, o espetáculo foi a estreia dele (Rasi já tinha sido
montado) no teatro carioca, precisamente no Teatro Glória e também a ótima
estreia de Aracy Balabanian nos palcos cariocas. Direção de Álvaro Guimarães,
na época, meu hóspede.
O gaúcho Luis Francisco Wasilewski escreveu a
biografia de VICENTE PEREIRA para a Coleção Aplauso : “Isto é Besteirol”, 200
páginas em quatorze capítulos com sua trajetória muito bem pesquisada,
comentada com brilho e recheada de depoimentos preciosos dos amigos, como Maria Lucia Dahl, Falabella, Maria
Padilha, Marcus Alvisi, Diogo Vilela, Rubens de Araújo, Thais Portinho, Ney Matogrosso, Eduardo
Dussek e Luiz Carlos Góes, entre outros. O livro é sério e tem a alma do VICENTE. Vale a pena ler. A Imprensa
Oficial de SP vende através do site.
Só se distancia de sua personalidade original e
transgressora no título da obra, pois realça um rótulo preconceituoso dado ao seu teatro, que
insistem em chamar de “gênero teatral”. VICENTE é maior, merecia um título à
altura da sua grandeza humana.
Segundo Wasilewski, o depreciativo apelido foi dado pelo “gelatinoso”crítico Macksen Luiz
quando escreveu a crítica de “As 1001 encarnações de Pompeu Loredo” de Rasi e
VICENTE, a estreia na direção de Jorge Fernando em 1980, Teatro BNH. Eu estava
nessa fita. Além de viver no palco o Pompeu, fiz toda a divulgação do
espetáculo. Com isso, conheci todas inspirações da dupla, descritas pelos
próprios em pormenores. Besteirol, cara, é o apelido da minha trolha.
Ah, os críticos, sempre eles! Nos anos 50 foram eles
que classificaram as comédias carnavalescas da Atlântida e Herbert Richers de
“chanchada”, que é tão depreciativo
quando o “besteirol”... Sempre preconceituosos e frustrados.
Contestado por muitos até hoje, o termo “Besteirol”
soa pejorativo em relação a um teatro inteligente, vibrante e que mudou a
dramaturgia brasileira no momento pós-ditadura. Foi criada uma comédia
inteligente e amarga por vezes. Uma geração de escritores que trouxe para o
palco uma reflexão diferente, caleidoscópica e bem humorada, encabeçada por
VICENTE PEREIRA, Mauro Rasi, Luiz Carlos Góes, Miguel Falabella, Alcione
Araújo, Felipe Pinheiro, Wagner Ribeiro, entre outros, e que desdobrou-se em
tantos novos autores.
Sobre o “Pompeu Loredo”, Wasilewski faz um pequeno
resumo: “...A peça mostra a busca de um funcionário público desiludido da vida,
planejando o suicídio. Pompeu é socorrido pela doutora Neme Maluf, que mantém
um consultório onde pratica terapias alternativas. Neme que teve seu registro
de terapeuta cassado pela Ordem dos Psicanalistas, faz Pompeu participar de uma
sessão de regressão, em que ele descobre ter sido uma falsa deusa no Egito Antigo,
um vampiro na Transilvânia e um cardeal corrupto na Itália renascentista. Há
momentos em que a peça mostra o contexto
na ditadura militar...”
A temporada surpreendeu pela inovação que trazia em
seu conteúdo.E também pela caprichada produção de Jorginho, cenários luxuosos
de Cláudio Tovar, figurinos de Tovar , Cláudio Gaya e Américo Issa, músicas
geniais de Dussek e Góes, e no elenco o humor moderno de atores do top de
Stella Miranda, Ricardo Blat, Duse Nacaratti, Marcus Alvisi, Diogo Vilela,
Leela Dah, Chris Couto, Claudio Baltar. Cumprimos boa temporada na cidade e fizemos
uma temporada de verão no Casa Grande lotada.
A comédia sempre foi um gênero considerado menor.
Estranho, não? O brasileiro é dotado de um humor tão presente no dia a dia, e
muitas vezes ele é a grande saída para dificuldades aparentemente
intransponíveis. Miguel Falabella, um dos papas do movimento e detrator do
título pejorativo, afirma no livro do Wasilewski que ‘a alegria é sempre
discriminada’.Seu longo depoimento a respeito é ótimo.
Em 1988, Falabella e VICENTE escreveram “Sereias da
Zona Sul”, direção de Jacqueline Laurence, e foi um estouro da boiada na
temporada teatral carioca. Ao lado de Guilherme Karan, Falabella firmava o
carisma de uma dupla que já tinha dado certo alguns há anos antes no Cândido
Mendes.
O ator VICENTE PEREIRA, apesar de esporádico, deixou
na lembrança de quem o viu em cena, momentos únicos. Na primeira montagem de
“Solidão, a Comédia”(1990), dirigida pelo Jorginho, no último esquete Vamos
falar francamente? que trata do tema da
morte, onde a personagem conversa com uma moribunda, ele dava um show de
interpretação. Um ator dramático que surpreendia.
Mas foi alguns anos antes, 1981, na peça “A receita
do sucesso” que pessoalmente acho ter ele seu momento máximo de atuação na
comédia: o dentista que ele criou, meio chapliniano,
idiota e cruel, tinha um timing, um domínio em cena, algo raro de
se ver. Brilhava. A cena à medida que crescia, a plateia embarcava num frenesi
de gargalhadas... E era seguido de perto pela inesquecível Duse Nacaratti, sua
atriz-fetiche.
Um apaixonado pelo cinema.Em todas as suas peças
aparecem toques cinematográficos, algumas sequencias ele adaptava às cenas com
citações bastante pertinentes. Coisa de gênio. Colaborou no roteiro de “Lili,a
estrela do crime”(1988) ao lado de Lui Farias e Aguinaldo Silva, estrelado por
Betty Faria.
“Espelho de carne” nunca foi montada no teatro, mas
recebeu versão na telona em 1984 assinada por Antonio Carlos da Fontoura.
Trata-se de um filme de suspense, beirando o terror.VICENTE, o autor da peça,
fez o roteiro com Fontoura. Um espelho Art-dèco
adquirido num leilão, que pertenceu no passado ao Palácio dos Prazeres, passa a
transmitir estranho fascínio a dois casais de amigos, de tal maneira que todos
passam a viver em função do espelho e das transformações sexuais que o objeto reflete.
O filme causou impacto, e até hoje é um dos mais reprisados no Canal Brasil.
VICENTE PEREIRA partiu muito cedo. E deixa uma
saudade que aumenta à medida que o tempo passa. Pisando no acelerador como ele
viveu, deixou uma obra consistente, nosso consolo. Merecia ser mais montado
para que fosse melhor degustado. Por trás da alegria esfuziante, do otimismo desenfreado,
ele era um homem sério, culto, místico, um pensador... como tão bem definiu seu amigo
Alvisi.
Este recorte
é apenas uma maneira de dizer que os seus amigos estão com saudades, alguns atingindo um banzo... Só.